Getúlio Vargas foi um homem bom. Ou foi ruim? Eu não sei. Não sei muito sobre o Sr. Getúlio. Já vi os próprios historiadores, ao serem perguntados sobre este tópico, responderem: É complicado. Eu juro, fui tentar estudar sobre ele, mas os estudos me disseram que não adianta estudar. Eles não conseguem me dizer muito sobre a índole de um homem aparentemente “multifacetado” como o homem que entrou pra história.
Eu sei uma coisa sobre Getúlio. A rede Globo de produções fez um filme sobre o sujeito. Aqueles filmes autobiográficos que você já sabe como funciona. Um pouquinho da juventude, um pouquinho da vida no meio e mais um pouquinho da vida final, tudo isso intercalado meio que ao mesmo tempo pra parecer que o filme é dinâmico e complicado. Em certa cena do filme, Getúlio pede para sua filha amarrar seus cadarços em seu quarto. Ela prontamente atende o pedido e fala em tom jocoso: Ah, pai, você é dono do Brasil e não sabe amarrar um cadarço. Getúlio fala do jeito mais Tony Ramos possível: Não conte este segredo pra ninguém, minha filha.
Acho interessante que esta moça vazou essa informação. Creio que tenha sido ela. Não mostra nenhuma outra cena no filme em que outra pessoa sabia do tenebroso segredo de que Getúlio não sabia fazer o coelhinho entrar na toca. E ela não só vazou, como contaram esse segredo pra todo mundo, em um filme, interpretado por Tony Ramos, feito pela maior empresa de comunicação da América Latina. Bom, se Getúlio era bom ou ruim eu não sei, mas aparentemente, respeitado ele não era. Podiam ter cortado essa cena do filme, mas acho que ela era importante para ajudar na empatia pelo ditador. Mais um desses truques de roteiro que alguém aprendeu em algum lugar que aprendeu em outro que dizem funcionar.
Quando criança, e mesmo na adolescência, eu não tinha nenhum interesse no meu corpo do joelho pra baixo. Chegava a níveis monstruosos de que eu nem sequer lavava no banho esta área. Notei isso aos 17 anos em uma sessão de terapia. Em minha defesa, eu tenho um metro e noventa de altura, eu sou muito mais distante dos meus pés do que a maioria da população. Em consequência disso, também não me importava em nada com meus calçados. Eu demorei até que um tempo pra aprender a amarrá-los. Não tanto tempo quanto demorei pra ler números romanos ou para aprender a ver horas em relógios de ponteiros. Quando era relógio de ponteiro com números romanos então, acho que não sei até hoje. Mas meu pai me ensinou, ele tinha uma boa didática. Meu pai era bom em me trazer pro mundo real. Nunca tentou me dizer que existia Papai Noel nem nada disso. Juro que ele dizia: Não vou deixar nenhum outro homem ganhar mérito pelo dinheiro que fui eu que gastei.
Mesmo aprendendo a amarrar cadarços, não era realmente a coisa que eu mais gostava de fazer da minha vida. Houve uma época que inventei um novo jeito de lidar com aquilo. Comecei a notar que algumas pessoas os amarravam por trás do tornozelo ou até mesmo ao longo da canela, e pasmem: cada modo de amarrar tinha até um nome. Me inspirando naquilo, inventei uma amarração que batizei de “Bicho-Preguiça”. Os braços da preguiça em forma de cadarços soltos ficavam balançando em volta do meu pé. Achei que eu ia ganhar o mundo e virar uma febre com minha nova invenção, mas tudo que ganhei foi uma bronca da minha mãe me pedindo pra parar de inventar moda. Neste caso, aplicada de maneira fidedigna a expressão, pois eu literalmente estava inventando moda. Sabe-se lá onde eu poderia estar se não tivesse sido repreendido pela minha família. Talvez hoje eu fosse diretor da Versace. Vai saber.
Minha mãe se adaptou a minha peculiaridade à sua própria maneira. Começou a comprar sapatênis para mim. Talvez alguns não entendam este conceito pois são pessoas que se renderam a atividade de ajeitar as ponteiras, mas basicamente trata-se de um tênis, com aparência de tênis, mas que no lugar dos cadarços, encontram-se elásticos camuflados. Por algum tempo eu usei sapatênis pois minha mãe era minha personal stylist. Só que alguma coisa mudou. Não sei se os astros se alinharam ou se desalinharam, mas um espectro anti-sapatênis rondou o Brasil. Uma névoa que corria acima da cabeça de todos, mas principalmente das moças em que meu coração era apaixonado. Começou um papo sinistro de que sapatênis era uma das maiores aberrações da moda, superando até mesmo os Crocs, que na época não passavam de uma piada mal contada. Não satisfeitos com isso, os críticos de sapatênis afirmavam que este seria o tênis que mais se assemelhava a energia do Luciano Huck. Eu demorei muitos anos para entender a crítica. Eu me amarrava no Huck. Tanto pelos carros maneiros que ele fazia, tanto por ter me feito notar a diferença da grafia do seu nome para a do super herói verde. Luciano era um ser complexo que me ajudou até a ler melhor. Mas eu entendi rapidamente que Luciano também era um sintoma de um deplorável sistema, ouvindo em Lamborghinis o clássico Sobrevivendo no Inferno. Quando entendi isso, fui firme em minhas opiniões e falei: Mamãe, não quero mais usar sapatênis.
A partir daí começou-se uma nova jornada; o que então colocar em volta dos meus pés? Observei muito os chãos por aí, procurando o tênis perfeito que talvez pudesse estar sendo utilizado por algum transeunte. Confabulando sobre botas ou Mocassins, acabei optando pelo meio termo: o All Star Cano Médio. Uso eles até hoje, confesso. Mas eu já me aventurei em outras áreas.
Certa vez, já adulto, em meio a diversos All Stars, resolvi tentar algo novo. Abri meu Google Chrome para procurar tênis. Acabei caindo em um site que tinha logotipo verde e uma flor bonita, simbolizando uma profunda preocupação com o meio ambiente. Maravilha, alguma coisa boa pelo mundo eu estava prestes a fazer. Procurei por várias páginas até que achei um tênis botinha interessante, e ao comprá-lo, pasmem, descobri que era um exemplar de um calçado vegano. Eu não sei exatamente o que isso quer dizer, mas na época aquilo me inspirou uma piada genial. Eu saía por aí dizendo “Comprei um sapato vegano. Estou doido para que ele chegue logo e eu descubra se o gosto é bom”. Eu adorei muito ela por alguns dias…. meses…. ok, foram anos tendo orgulho deste trocadilho barato, mas hoje em dia, sou uma pessoa melhor. Muito melhor do que aquele traje.
Não foi muito tempo até aquele tênis vegano começar a entrar água, rasgar, e não apenas isso, ele era de camurça. Só quem já comprou um calçado de camurça sabe o que é viver isso. Não irei explicar, se você nunca viveu esta experiência, compre um. Viva esta completa decepção por você mesmo, você merece. Usei aquilo por muito tempo. Eu gostava de como ele aparentava e honestamente, depois de alguns anos na vida você tá pouco se lixando se tem água ou não dentro da sua meia. Uma coisa que notei é que não tenho mais nenhum interesse de estar confortável dentro do meu corpo. Minha coluna dói, meu pescoço dói, até mesmo meu cérebro dói, e eu não estou nem aí. Mas meu limite foi quando um caco de vidro entrou pelo furo da sola e feriu meu pé enquanto eu caminhava pelas ruas de São Paulo. Parei de usar meu velho e carcomido tênis vegano. Pensei em, para finalizar aquele grande ciclo, dar uma pequena mordida nele para finalmente ver se o gosto era bom ou não. Não entrarei em detalhes se decidi fazer isso.
Pois lá fui eu abrir novamente meu guarda roupa para ver o que tinha me restado na vida. Três All Stars cano médio, um tênis de corrida feio que dói e um Crocs tie-dye. Sim, me desculpe, mas quando você vê um Crocs, ainda por cima em cores tie-dye, estampado numa vitrine, você precisa levar aquilo pra casa. É simplesmente uma obra de arte que retrata a bizarrice dos tempos, mas de impossível utilização pública. Um dos meus All Stars estava completamente fedido, e este foi o motivo pelo qual nunca mais encostei nele. Que vire moradia para baratas. Peguei o preto. Básico. Botei em meus pés e fui pra rua fazer minhas importantes tarefas. Foi questão de minutos para eu lembrar porque parei de usar aquilo. Um pedaço de plástico da estrutura do cano médio soltou e cavava com sua ponta o meu tendão de Aquiles o tempo inteiro. Se Aquiles não podia nem com um toquinho em seu tendão, imagina com aquilo. Meu tendão ficou em carne viva no final do dia. Aposentei-o imediatamente. Não precisava viver aquilo, Jesus já caminhou sangrando e sofrendo pelos meus pecados para que ninguém mais tenha que viver algo parecido. E não tem nem como doar, seria um ato contra a minoria de pessoas em situação de rua. Talvez eu pudesse levar naqueles sapateiros, eu adoraria ir em algum um dia, mas sinto que não estou pronto pra viver isso. Alguns guardam a experiência de ver a aurora boreal para o final da vida, eu guardo a de ir em um sapateiro. Não quero ficar viajando e tendo trabalho na minha velhice. Guardo experiências simples como sonhos para que eu possa morrer falando que foi fácil fazer tudo que eu queria.
Peguei o outro All Star cano médio, um azul marinho mas bem desbotado pelo tempo e já amaciado em sua estrutura. Depois de pouco tempo de caminhada, me lembrei novamente porque parei de usar ele também. Algo deu errado na magia dos traçados do cadarço que eu não consigo entender e aquele fio virou algo extremamente longo. Não importa o jeito que eu amarre, as orelhas do laço ficam ao estilo “Bicho-Preguiça”, gigantescas em sua existência. É simplesmente insuportável andar com ele na rua. Não pelos tropeços, mas por todo mundo que quer salvar minha vida. O cadarço está amarrado, mas todos os bons samaritanos da rua acham que não, e eu sou parado de 10 em 10 minutos por alguém que cuida da minha existência dizendo que ele está desamarrado. Minhas bochechas doem de tantos sorrisos educados que dou ao retribuir um “obrigado” a cada cidadão de bem deste país.
Honestamente, não sei mais o que fazer. Talvez eu deva jogar todos esses tênis em fios de luz na rua. Eu já ouvi tanta história sobre o que eles significam que acredito que eles não devam significar mais nada. O problema é que até os fios de postes andam desamarrados ultimamente. Qual a grande pira da prefeitura de deixar aquilo solto na altura da nossa cabeça nos fazendo ter que desviar a cada esquina? Aquilo tá ligado? Se eu encostar eu tomo choque? São literalmente os galhos das árvores da selva de pedra nos humilhando pelos macacos de sapatos que somos.